novembro 24, 2024 19:58

Povos e comunidades do cerrado denunciam racismo em ataques químicos do agronegócio

“Eles jogam veneno lá em cima, não tem mais Cerrado para proteger, e desce para as águas nos brejos. Tá tudo contaminado”. O relato de Jovecino Pereira da Silva, do Território Ribeirinho Chupé, município de Santa Filomena (PI), foi partilhado no último dia 15, na Audiência sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado, realizada pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

A fala de Jovecino se somou a depoimentos de organizações, povos e comunidades tradicionais do Cerrado impactados pela ação e influência do capital que opera nos territórios pelas mãos do agronegócio e da mineração, e que tem se refletido na paralisação e anulação de procedimentos demarcatórios, grilagem de terras, queimadas, desmatamento e, de modo especial, na contaminação por agrotóxicos, utilizados como arma química por empresários do agronegócio como forma de exterminar ou inviabilizar a vida dos povos da terra.

Na próxima terça-feira, 29, o júri fará um pronunciamento ao vivo com considerações sobre esta audiência. O pronunciamento será transmitido pelo YouTube da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

Intoxicação

Ainda no dia 15 de março, Mercês Alves, indígena e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), contou como o povo Akroá Gamela do Vão do Vico, no Piauí, tem sido afetado. “Teve um período que por mais de dois anos não tinham como plantar. Quando iam no local, estavam lá os pistoleiros sem permitir que eles se aproximassem, e tudo o que plantavam era destruído pelo trator”, conta, denunciando também o uso de agrotóxicos pulverizados por aviões, que tem afetado as comunidades e todo ecossistema do Cerrado.

De Lagoa da Confusão, município mais afetado pelos agrotóxicos no Tocantins, os indígenas Renato Krahô e Davi Krahô explicaram como os agrotóxicos têm impactado na saúde das comunidades. Davi apontou que duas das pessoas presentes no vídeo exibido instantes antes da sua fala já haviam falecido em decorrência das contaminações. Renato Krahô destacou que “muitas espécies de peixe não existem mais e muitas aves têm morrido no entorno das lavrouras”.

Eryleide Domingues, do Território Guyraroka (MS), trouxe em seu relato que são frequentes os sintomas de intoxicação na população do território, como dor de cabeça, diarreia, coceira na pele e nos olhos. Ela destacou que até o cheiro no território é marcado pelo odor dos produtos químicos. “Não conseguimos produzir alimentos para o nosso próprio consumo por conta dos ataques de formiga, dos animais que correm dos agrotóxicos para o alimento saudável”.

Sem soberania alimentar

A situação do Assentamento Roseli Nunes, do Mato Grosso, foi um dos grandes exemplos do avanço da monocultura como responsável pela deterioração das condições de vida das comunidades. Cercadas por canaviais, 330 famílias do assentamento convivem diariamente com o veneno que é despejado pelos grandes empreendimentos. “O nosso assentamento é pantanal, é Cerrado, e estamos no meio desses biomas e também com o Amazonas. Estamos vivendo com uma forte ameaça no território. Eu peço socorro e alguém há de nos ouvir”, denunciou Miraci Pereira, representante do território.

A presença de doenças ocasionadas pela convivência forçada com os agrotóxicos e a perda da qualidade do solo e dos alimentos, trazendo insegurança alimentar, foi um relato comum às comunidades. Um dos depoimentos mais contundentes e emocionados da audiência foi o de Marli Borges, do Quilombo Guerreiro, do Maranhão, que denunciou ainda o descaso da saúde pública da região e a omissão em identificar a causa das doenças. “Não querem fazer teste pra saber se é veneno no meu sangue. Eu não tenho saúde, só vivo doente, não sei se na próxima audiência estarei viva”, disse.

Poder popular

Zenilde dos Santos, do Acampamento Viva Deus, no Maranhão, relatou que são cultivados na comunidade arroz, feijão, milho, mandioca e abóbora. No entanto, esses alimentos já não têm a mesma qualidade para alimentação. “Plantamos uma melancia, nasce bonita e depois vai se acabando e eu acredito que é por causa do veneno. Nós somos desassistidos pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)”, relata. A comunidade convive com o veneno das plantações de eucalipto da Suzano Papel e Celulose.

Félix Lima, popularmente conhecido por Gato Félix, camponês e morador do Acampamento Viva Deus, fez o seu manifesto para o júri do Tribunal Permanente dos Povos enfatizando que a busca por lucro, orquestrada pelo capital, é o que tem pressionado as comunidades e os seus modos de vida. “Eu quero dizer para o tribunal que a luta é ferrenha. Que a gente não bata só no agronegócio, porque toda essa cadeia de agrotóxico vem de um capital. A classe trabalhadora tem que se juntar contra esse ferrenho capital. Não tem salvador da pátria, temos que criar o poder popular”.

As denúncias de violações feitas no primeiro dia de audiência foram seguidas por perguntas e manifestações do júri, composto pelo espanhol Antoni Pigrau Solé, professor de direito internacional público; a jurista e ex-vice procuradora geral da República Deborah Duprat; o bispo da Diocese de Brejo (MA) Dom José Valdeci; a jornalista Eliane Brum; a socióloga venezuelana Rosa Acevedo Marin; a jornalista e pesquisadora uruguaia do Grupo ETC Silvia Ribeiro; o coordenador jurídico a da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Eloy Terena; e a portuguesa Teresa Almeida Cravo, professora de relações internacionais. O jurista francês Philippe Texier também compõe o júri, e é o atual presidente do TPP.

Racismo que estrutura as violações

As manifestações do júri no último dia da audiência contemplaram não apenas aspectos concretos das denúncias, como também as estruturas que engendram e perpetuam as violências cometidas pelo agronegócio, pela mineração e pelo poder público contra povos e comunidades do Cerrado.

A vice-procuradora-geral da República aposentada Deborah Duprat, membro do júri, destacou que o ponto principal da audiência é o racismo estrutural e ambiental que explica as violações de direitos dos povos. “Não existe um neoextrativismo e nem um neocolonialismo. Trata-se do velho projeto colonial”, afirmou Duprat.

No mesmo sentido, o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Eloy Terena, também membro do júri, frisou que o racismo é um método de dominação, e como tal impõe restrições e nega acesso a direitos, como o próprio direito à natureza dos povos originários e tradicionais.

A jornalista e pesquisadora uruguaia Silvia Ribeiro afirmou, a partir dos depoimentos e apresentação de dados sobre contaminação por agrotóxicos, que existe “uma abundância de elementos para estabelecer que existe uma guerra química e ataques feitos aos territórios. “Há a violação da saúde, mas também uma invasão dos corpos, não apenas da terra. É muito brutal a presença de agrotóxicos no leite materno, na urina, no sangue, e que a chuva mantenha esse veneno”, destacou Ribeiro.

Manifestação das mulheres

O segundo e último dia da audiência contou, ainda, com a manifestação, ao vivo e em vídeo, de mulheres Cerradeiras, que clamam pelo direito à vida com dignidade. Trechos de uma carta-manifesto escrita pelas mulheres foi apresentado à audiência, ecoando suas vozes contra o ecocídio e o genocídio cultural no Cerrado, contra as desigualdades estruturais produzidas pelo patriarcado racista desde a era colonial. “Externamos anúncios em defesa da vida com justiça social, com igualdade, com garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada, com proteção da biodiversidade e do nosso patrimônio cultural. Por isso trazemos a este importante Tribunal Permanente dos Povos os nossos depoimentos, permeados por nossas próprias ideias e vivências”, diz um dos trechos da carta-manifesto.

 

 

Com informações da assessoria

Foto: Reprodução

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