Completam-se neste sábado (17) exatos seis meses desde que a enfermeira Mônica Calazans recebeu uma injeção de Coronavac, em São Paulo, dando início à campanha de imunização contra a Covid-19 no Brasil. Desde então, 32,8 milhões de pessoas foram imunizados no país – com duas doses ou com a vacina de dose única: o montante corresponde a 20,6% da população adulta nacional. As informações são da CNN com base nas secretarias estaduais.
Especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que a proporção é insatisfatória em um país cuja infraestrutura de saúde permitiria, a essa altura, ter imunizado toda a população. O custo do atraso, segundo eles, foram as mais de 300 mil mortes por coronavírus que aconteceram nos últimos seis meses e poderiam ter sido evitadas.
“O Brasil perdeu a chance de servir de exemplo e ser uma referência na vacinação contra a Covid-19”, diz Raquel Stucchi, infectologista da Unicamp (Universidade de Campinas) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “Nós temos há 40 anos o melhor programa público de vacinação do mundo e temos um histórico de campanhas públicas de muito êxito, mesmo considerando a dimensão do nosso país e as dificuldades geográficas. O esperado era que mais uma vez o Brasil se colocasse como exemplo de vacinação rápida e ágil.”
Neste mesmo período, a título de exemplo, Israel imunizou 60% de sua população; o vizinho Uruguai, 59%; o Reino Unido, 52,36%; e os Estados Unidos, 47,96%.
O primeiro semestre da campanha no Brasil foi marcado por denúncias de corrupção, atrasos constantes do cronograma e declarações polêmicas de autoridades que por vezes colocaram as vacinas em descrédito. Houve também mudanças de orientação sobre intervalo entre as doses, falhas em bancos de dados, deslocamentos populacionais em busca de imunizantes, disseminação de notícias falsas, falta de comunicação por parte do governo e o surgimento de novos personagens sociais, como os fiscais de comorbidade e os sommeliers de vacina. E a base de todos os problemas na campanha: a escassez dos imunizantes.
À CNN, o Ministério da Saúde argumenta que a demora na obtenção de vacinas foi consequência da alta demanda mundial, e que as expectativas são grandes para que, no segundo semestre, o ritmo acelere o suficiente para vacinar toda a população maior de idade no país.
Avança em alguns estados e municípios o calendário para aplicar as primeiras doses, que foram priorizadas pelo PNO (Plano Nacional de Operacionalização contra Covid-19), documento produzido pela coordenação-geral do PNI (Programa Nacional de Imunizações) como medida adicional de resposta ao enfrentamento da doença. Até sexta, 87,3 milhões de brasileiros haviam recebido ao menos uma dose, o que corresponde a 55% da população adulta.
Neste sábado (17), quando se completam os seis meses da campanha, São Paulo aplica a primeira dose em pessoas entre 35 e 37 anos. O Rio começa a imunizar a faixa dos 37. Todos os cronogramas são feitos com base na expectativa de remessas de imunizantes e já sofreram diversas alterações devido ao não cumprimento de entregas e o consequente desabastecimento dos postos.
Enquanto isso, os números da pandemia começam a cair pela primeira vez desde janeiro, mas seguem assustadores: na sexta-feira (16), foram mais de 45 mil casos confirmados e 1.456 mortes, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A média móvel de mortes, um balanço dos últimos sete dias, vem apresentando queda desde meados de junho, mas permanece elevada, acima de mil.
Especialistas reforçam ainda que, apesar do avanço da vacinação, é necessário manter as demais medidas de proteção contra o coronavírus, como o uso de máscaras, a higienização e as políticas de isolamento social.
Entenda os principais pontos que marcaram os primeiros seis meses da imunização contra a Covid-19 no Brasil.
Faltou vacina
O Programa Nacional de Imunização (PNI) brasileiro conta com 36 mil salas de vacinas espalhadas pelo Brasil, que servem tanto para aplicar imunizantes de rotina como para campanhas específicas, como é o caso da gripe todos os anos e da Covid-19, em 2021. O PNI é anterior à existência do Sistema Único de Saúde (SUS), que possibilitou sua expansão, e foi responsável pela erradicação de doenças como a varíola.
Hoje, por meio do PNI, o Brasil consegue ofertar a sua imensa população acesso gratuito às vacinas recomendadas pelos organismos internacionais de saúde. Na prática, isso significa que, antes mesmo de a pandemia começar, o país já dispunha da infraestrutura necessária para iniciar uma campanha emergencial desse porte.
“Esse era um dado muito positivo para o Brasil, pois para imunizar a população contra o coronavírus não era necessário construir uma infraestrutura do zero. Saímos à frente nesse sentido”, diz José Cássio de Moraes, professor da Santa Casa de São Paulo e integrante do Observatório Covid-19, iniciativa independente que reúne pesquisadores para disseminar informações sobre a doença com base em dados.
Segundo Moraes, no entanto, a capacidade do sistema brasileiro não foi usada. “Essas 36 mil salas poderiam estar aplicando no mínimo dois milhões de doses por dia, como já foi feito anteriormente. Isso dá 10 milhões de doses por semana, 40 milhões por mês. Em seis meses, poderíamos ter toda a população adulta vacinada”, calcula o professor.
No final de fevereiro, primeiro mês completo de campanha, o Brasil aplicou em média 40,7 mil primeiras doses por dia, segundo dados do Vacinômetro, plataforma que projeta o tempo necessário para vacinar a população adulta brasileira com base na média móvel de primeiras doses aplicadas nos últimos sete dias. No dia 15 de julho, essa média estava em 727 mil, um avanço considerável, porém ainda bastante aquém da capacidade do sistema.
Seguindo esse ritmo, a iniciativa calcula que levaria até o dia 11 de novembro para que 90% da população adulta do Brasil receba pelo menos uma dose. O vacinômetro é uma iniciativa independente feita pelo desenvolvedor Bernardo Loureiro.
Um levantamento feito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) revela que o Brasil precisa aplicar mais 207 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 para atingir a imunização completa de toda a população. Isso exigiria a aplicação de mais de um milhão de doses diárias até 31 de dezembro.
O motivo para o baixo desempenho é, essencialmente, a falta de imunizantes no país.
“No começo da campanha tínhamos um cenário mais incerto em relação ao cumprimento do cronograma, tivemos dificuldade em avançar. Hoje observamos um cenário mais claro, com maior regularidade”, diz Rodrigo Otávio da Cruz, secretário executivo do Ministério da Saúde. Cruz assumiu o posto em março no lugar do coronel Élcio Franco, que meses depois tornou-se centro das investigações sobre pagamento de propina na compra de vacinas.
Segundo ele, a disponibilidade de vacinas no Brasil dependia da demanda mundial. Conforme países fabricantes, como Estados Unidos, Israel e China, avançaram suas respectivas campanhas, houve maior disponibilidade para a compra e venda em outras regiões. “O mundo inteiro ainda clama por vacina, não tem nenhum país com a população inteira imunizada, mas conforme eles vão avançando, temos maior previsibilidade do recebimento de insumos e imunizantes”, diz.
Já os especialistas ouvidos pela CNN apontam lentidão e incompetência do governo para negociar a compra de doses desde o ano passado, quando fabricantes começaram a fazer ofertas, enquanto ainda aguardavam aprovação dos imunizantes. Nos últimos meses, surgiram indícios de que o governo negligenciou essas negociações — a hipótese é um dos principais pontos de investigação da CPI da Pandemia no Senado.
“A falta de vacinas decorre do retardo das negociações com várias empresas, o que tem sido cada vez mais evidenciado. Outros países adiantaram os recursos para garantir o produto, o que não aconteceu aqui”, critica Moraes, do Observatório Covid-19.
Diferenças na fila de prioridade
O PNO foi estruturado em cima da estratégia de percorrer grupos prioritários, começando por idosos e trabalhadores da saúde. A lógica seguiu a do Reino Unido, primeiro país a vacinar contra a Covid-19, com o objetivo de reduzir a internação por casos graves e a mortalidade.
No entanto, no Brasil, estados e municípios tiveram liberdade para introduzir grupos na fila, fazendo com que a campanha avançasse em ritmos diferentes. Para especialistas, essa flexibilização fez com que setores da sociedade fossem priorizados antes da hora devido a pressões políticas, prejudicando grupos mais vulneráveis ou expostos.
“Como não tenho vacina [em número suficiente], preciso vacinar primeiro os que têm chance de ter doença em sua forma mais grave ou que têm chance de entrar em contato frequente com o vírus. A exposição de um caminhoneiro, por exemplo, é menor do que a do trabalhador do transporte urbano, como motorista de ônibus e cobrador. Na escassez, precisamos identificar esses grupos”, diz Moraes.
A heterogeneidade de ações também provocou fugas para municípios mais flexíveis, provocando um desequilíbrio no sistema, além de dificultar o entendimento da cobertura vacinal, já que moradores de uma cidade são contabilizados em outra pelo sistema.
“As prefeituras não têm capacidade de absorver esse tipo de contingente. Não houve repasse de recursos para essa finalidade”, diz Krerley Oliveira, coordenador do Laboratório de Estatística e Ciência de Dados da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) e colaborador do Painel da Vacinação, outra plataforma que monitora o andamento da campanha no país, com base nos dados do Ministério da Saúde. “Se estivéssemos vacinando exclusivamente por faixa etária, seria mais simples acompanhar o processo. A partir do momento que entra uma série de categorias, abre espaço para questionamentos.”
Problemas com dados e distribuição
O Ministério da Saúde centraliza a compra dos imunizantes e os distribui aos estados que, por sua vez, repassam aos municípios. Segundo a pasta, a divisão é feita considerando as populações locais e a proporção dos grupos de risco em cada região, como idosos, trabalhadores da saúde e indígenas. A logística é complexa, dado os diversos imunizantes disponíveis, com diferentes prazos entre a primeira e a segunda dose. Além disso, a análise é feita sobre bancos de dados oficiais, como o do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje defasados.
Raquel Stucchi avalia que a logística foi inadequada. “A distribuição não atendeu os grupos prioritários, o que fez com que houvesse muita discrepância em relação a quem estava sendo vacinado em cada região”, diz. “Quando você quer controlar uma doença, a distribuição precisa depender do que está acontecendo localmente. Não fizemos essa análise.”
Os dados sobre doses aplicadas também são problemáticos, com inserções de segundas doses para pessoas que não tomaram a primeira, aplicações não identificadas, duplicidade de nomes, vacinas trocadas, vacinas vencidas e até injeções registradas como feitas antes de 2021.
“A falta de dados ou os erros afetam o processo. Já estamos em um ambiente bastante tenso, com trabalhadores cansados, fazendo um esforço hercúleo. Os erros na base comprometem a credibilidade da campanha e criam um estresse desnecessário”, diz Oliveira, da Ufal. “Essa melhoria dos sistemas de informação precisa ser feita não só para o combate ao coronavírus, mas para todo o SUS, que é carente de dados e softwares bem feitos. A pandemia deixou isso, entre muitas outras coisas, mais claro.”
Priorização da primeira dose
Devido à escassez de imunizantes, o PNO estabeleceu priorizar a aplicação da primeira dose, tendo assim uma fatia maior de brasileiros com uma cobertura parcial da vacina. Para isso, por exemplo, foi ampliada a distância de aplicação da segunda dose do imunizante da Pfizer.
“Observamos hoje um cenário de redução de óbitos e menor demanda de infraestrutura hospitalar, o que atribuímos a essa estratégia”, defende Cruz, secretário executivo do Ministério da Saúde.
Mas a escolha de priorizar a primeira dose também é alvo de críticas, tanto pelo fato de a mudança de orientação causar confusão quanto por provocar uma falsa sensação de cobertura vacinal, levando pessoas a flexibilizar precocemente medidas restritivas e se expor indevidamente ao vírus.
“É um erro de gestores passar a informação de que vacinar a população é garantia de que temos a pandemia sob controle. É preciso vacinar bastante, com doses completas, e aguardar a redução do número de casos, internações e óbito de maneira sustentável por duas ou três semanas para pensar em flexibilizar”, pondera Stucchi.
A infectologista também ressalta o fato de a proteção da vacina ser ainda menor para novas variantes, como a Delta. “Postergar a segunda dose significa manter uma grande quantidade de pessoas sem proteção, quando poderiam estar se seguíssemos a bula da vacina”, diz.
O Painel da Vacinação mostra um número expressivo de pessoas que perderam o prazo da segunda dose: mais de 4 milhões. “As pessoas não estão tomando a segunda e é preciso entender o porquê. Pode ser dificuldade de acesso, desinformação, medo, dificuldade com o horário de atendimento ou falta de vacina. São questões que precisam ser entendidas pelo governo”, diz Krerley Oliveira.
Falta de comunicação e disseminação de fake news
Outra crítica feita à campanha é a de que não houve, por parte do governo, um esforço massivo para comunicar a população sobre a importância da vacina, a sua disponibilidade e a necessidade de retorno para a segunda dose. A ausência de uma estratégia nesse sentido favoreceu a proliferação de notícias falsas sobre as origens dos imunizantes e seus efeitos.
Uma consequência prática de falha na comunicação foi o baixo comparecimento em postos abertos aos sábados, por exemplo. “As pessoas não foram vacinar porque ficaram dormindo em casa? Não, mas porque não sabem que o posto vai estar aberto. Na periferia, o acesso à informação é ainda menor, é preciso passar com um carro de som dizendo literalmente ‘o carro da vacina chegou”’, diz Moraes, em uma referência ao vídeo que viralizou ironizando a ausência de ações do governo.
Outro efeito foi o surgimento do que se convencionou chamar “sommeliers de vacina”. O termo se refere a indivíduos que se recusam a tomar o imunizante de determinados fabricantes ou que percorrem postos em busca da vacina de sua preferência. O que é defendido pelos adeptos como direito à livre escolha pode ter consequências preocupantes na logística da campanha.
“Todas as vacinas aplicadas no Brasil têm uma eficácia semelhante para diminuir os casos graves, internações e óbitos. Isso precisa ser exaustivamente divulgado para que a população se sinta confiante em relação ao fato de que tanto faz a vacina que vai tomar”, diz Stucchi.
O secretário executivo do Ministério da Saúde reconhece que há o que se aprimorar na comunicação do governo em relação à vacinação. Segundo ele, tem sido reforçado com ministros de Estado o discurso pró-vacina.
“Estamos com uma campanha de publicidade com a família do Zé Gotinha, porque achamos interessante trazer a mensagem da família para incentivar que todos se imunizem. Recentemente lançamos também uma campanha para a segunda dose, e sempre que o ministro fala pedimos para ele reforçar em seu discurso a necessidade e incentivo para que todos os brasileiros, caso tenha chegado a época, se imunizem.”
As expectativas para o segundo semestre
Existe hoje a previsão de recebimento de mais de 400 milhões de vacinas nos próximos meses, de quatro laboratórios diferentes. Cruz afirma que o Ministério da Saúde mantém reuniões semanais com todos os fabricantes, nas quais é discutida a possibilidade de se antecipar as entregas.
A expectativa é que o mês de julho bata o recorde de doses aplicadas, ultrapassando as 40 milhões -até agora, foram aplicadas 20 milhões. O secretário diz que, em agosto e setembro, o patamar pode chegar a 60 milhões -valor que chega ao limite normal da capacidade do PNI, considerando a aplicação de doses também aos sábados. “Vamos testar a capacidade do sistema de forma diária. Não podemos cravar que todas as doses serão entregues, mas temos boas esperanças de que os números vão se concretizar”, diz Cruz. Segundo calcula, será necessário cerca de 130 dias para terminar de imunizar a população adulta.
O próximo passo, dizem os especialistas, é pensar na vacinação de adolescentes. Além disso, será necessário avaliar a necessidade de aplicar uma terceira dose na população, ou segunda, para o caso da Janssen. Seguir os protocolos de prevenção e reforçar a comunicação com a população é essencial.
“Vacinar é um ato social. Você está se protegendo e protegendo pessoas que te cercam. É a forma como pessoas que não podem tomar a vacina, seja porque não chegou a vez ou por uma questão de saúde, se beneficiam também”, conclui Moraes.
*Colaboraram Julyanne Jucá e Vital Neto
Conteúdo CNN
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